16/10 - São Paulo

Bom, lá vamos nós de novo. Porque sofrer a dor de estar vivo é obrigatório, mas onde ela vai ser sofrida é opcional. Após dois anos pandêmicos sem poder viajar, uma das poucas coisas capazes de oferecer alguma suportabilidade à minha tão gratuita e ofensiva existência, ao lado da noção de que a vida, se não mais cedo, ao menos mais tarde acaba, assim como acaba o jato forte da urina, já dizia Caetano, resolvi voltar à ativa. O projeto original era ir pro Japão, Coréia, Taiwan, Hong Kong, em 2020. Quando a coisa começou a endurecer em Hong Kong lá no fim de 2019, prenunciando o que vai ser o Brasil sob mais um mandato Bolsonaro e mais dois ministros do STF indicados pelo sujeito, iniciou-se aquele gostinho de vai dar merda aqui na minha garganta, mas eu não fazia ideia do que ainda viria pela frente. Aquele pessoal devoto do Ozzy lá na China resolveu mastigar uns morcegos, veio a covid, e as férias do Aderbal foram a pique.


Agora, fim de 2021, com três doses de vacina no braço, as coisas voltando ao normal, tanto quanto é possível alguma normalidade com o dólar a 6 reais, resolvi dar um foda-se e dizer a mim mesmo que dinheiro a gente ganha de novo, vida não (exceto se a vida durar tanto e a covardia para se livrar dela for tamanha que a gente tenha tempo para sobreviver à nossa conta bancária), e viajar pra algum canto qualquer. Aí, compradas as passagens, reservados os hotéis, no dia seguinte aparece a ômicron.

Vai dar merda, de novo.




Não é Ásia. Não são 30 gloriosos dias. São só os Estados Unidos, duas semaninhas. Dólar a 6 reais. Mas, numa existência em que é indigno negociar com a gente mesmo tudo o que é realmente relevante, experimento algum orgulho em poder olhar pro espelho e dizer pra mim mesmo que me permiti férias menos do que ideais, mas, ainda assim, férias. 

De volta aos Estados Unidos, então... Se na última viagem passei lá pelos estados-Piauí daquele país, desta vez vou meio que lá para os Sergipes e Alagoas deles. Agora vai ficar faltando conhecer apenas um miolinho do país, lá pros lados de Iowa. Qualquer anos destes, na próxima viagem-tampão, eu fecho a fatura. Vou praqueles estados vermelhos, muito vermelhos, mais vermelhos do que o sangue nos olhos da Flordelis, ou o sangue nas mãos do capitão. Estados daquela gente que não gosta de usar máscara e de tomar vacina. De gente que votou em massa no patrono do blog desta viagem, meu amigo Donald. 

Para ir de uma cidade à outra, muitas noites dormidas dentro de ônibus da Greyhound,  aquela companhia que ao fim de cada viagem você promete a si mesmo que jamais voltará a utilizar mas, então, um par de anos depois, se vê recaindo e defumando o arrependimento anunciado. Meio como aquela controladora de acesso que você pegou nem sequer no Tinder mas, sei lá, no Par Perfeito, e cuja dentadura você sentiu dançar em sua boca. Ou aquela auxiliar do lar que você pegou, novamente sequer no Tinder, mas, sei lá, no Badoo, e cuja falta de alguns dentes, associada ao mau estado de preservação dos dentes restantes, lhe causou uma hemorragia vigorosa na única, e nem tão grande ou rígida, piroca que o Criador lhe forneceu, e que você prometeu a si mesmo que jamais, em hipótese alguma, voltaria a convidar para fazer coisa feia em cima de seu edredon. Mas, na hora em que bate aquele chamado hormonal, você fraqueja.



O tema deste ano, numa vida que vai ficando cada vez mais minúscula, é o reativo e ressentido "make America great again", estampado no boné que esconde as cada vez mais pujantes entradas em minhas têmporas. E vai dar no saco ficar passeando com este boné na mão pra lá e pra cá o tempo todo.

Vou. Não sei se volto, podem fechar o espaço aéreo com a progressão da ômicron. O que, ademais, dificultará ainda mais estar dentro de um avião que exploda no ar e me poupe de que este já outono de minha vida tenha tempo de se tornar um prepotente e cruel inverno.


Ah, e numa pequena mas sincera concessão a algum fiapo de humanidade e empatia que deve ter sobrado em algum cantinho de rodapé de meu ser, porque nem só de incorreção política e escrotice é feito o homem que não recusa contato com sua própria monstruosidade, homenageio todos aqueles que têm dores maiores do que estas pequeno-burguês-existenciais do Aderbal, que morreram de covid ou sobreviveram, de algum modo, a ela. Sei que, no fundo, sou feliz e não sei que sou.




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